domingo, 9 de julho de 2017

RIBEIRA BOTE 74, AO COMBATE! JORGE SOARES



Article “Ribeira Bote 74, ao combate !” par Jorge Soares
Publié dans le journal “Tribuna” du 1er octobre 1988
Dizem os que lá estiveram que Nhô Ambrózio voltou essa noite, mas para empunhar outra bandeira. E o exército voltou a responder com as metralhas e disparou. Sóque desta vez Ribeira Bote foi quem escolheu o campo de batalha, armou barricadas, organizou a defensiva e deu a ordem: ao combate!
23 de Setembro de 1974. O exército português tinha começado a retirada após as sucessivas derrotas que lhe vinham sendo infligidas pelas forças rebeldes e revolucionárias das nossas terras. O “25 de Abril” tinha sido o culminar de uma escalada repressiva que tinha custado a nós, os africanos, e aos próprios portugueses, tantas vidas e tantas riquezas.
Independência ou morte, esse era o nosso propósito. Mas em Portugal havia gente que embarcara no barco da Revolução de Abril e pretendia, talvez, fazer do arquipélago de Cabo Verde um reduto do império. Nessa época, trouxeram para aqui, mais exército e marinha vindos da Guiné-Bissau, que foram concentrados no Mindelo e na Praia.
Uma parte dessas forças estacionadas no Mindelo, a 21 de Setembro de 1974, num acto de vandalismo, decidiu lançar a confusão na cidade, alterando a ordem pública, ameaçando e batendo em mulheres, crianças e homens desarmados, faltando ao respeito às raparigas. A população não estava disposta a aceitar estes abusos e enfrentou os “tugas”.
No dia seguinte, mais de 200 soldados voltaram, mas desta vez vinham armados com chicotes de aço, paus e correntes de ferro e começaram na Praça Nova a querer expulsar daí as pessoas e arremeteram violentamente contra os cidadãos que saíam do cinema, chegando até a lançar uma granada incendiária para uma casa onde havia uma festa. Novamente os mindelenses resistiram valentemente, com pedras, até à intervenção da Polícia Militar Portuguesa que acudiu, bem armada, apoiando os insurgentes e a partir desse dia reforçou as patrulhas pela cidade.
Alguns caboverdeanos que labutavam no comando militar, inteiraram-se de que o terceiro dia de violência dos “tugas” seria contra a localidade da Ribeira Bote - conhecida já por “zona libertada” porque desde o golpe militar em Portugal, começou a funcionar como o epicentro de onde partiam as manifestações e outras actividades promovidas em S. Vicente pelo Partido.
A informação correu de porta em porta e chegou aos bairros vizinhos de Madeiralzinho, Vila Nova, Bela Vista... Começou-se a procurar armas com as quais se enfrentaria as tropas. Confeccionaram-se “coktéis molotovs” (com garrafas, pregos, gasolina, pedaços de vidro, etc) ; cada elemento da revolta armou-se com aquilo que pôde conseguir: catanas, paus, machins, arpões; quebraram-se as lâmpadas das ruas e os homens mais fortes tomaram posição em cima de prédios altos de onde pudessem atirar melhor as pedras e os “coktéis”.
Alguns combatentes do Partido que já tinham regressado ao país, entre eles os camaradas Carlos Reis e Antônio Leite, deslocaram-se à Ribeira Bote, alertaram as pessoas no sentido de se prepararem convenientemente para tudo aquilo que pudesse suceder e recomendaram calma à população para se evitar cair, precisamente, naquilo que alguns militares portugueses queriam: violência e massacre. Mas à violência opressora se iria responder com a violência revolucionária.
As tropas portuguesas, como se esperava, lançaram-se contra Ribeira Bote. O primeiro "jeep" do exército que entrou na zona foi imediatamente recebido com a explosão de uma das garrafas incendárias e os atacantes gritaram: “O PAIGC armou os gajos"!
Em resposta, fizeram vários tiros de G-3 e puseram-se em fuga para, numa segunda tentativa, tentarem uma infiltração a pé por Fonte Cônego e Cruz por onde conseguiram entrar até o Alto de Sentina. Metralharam a porta da sentina, julgando que havia pessoas dentro e atiraram cegamente na medida em que estavam sendo apedrejados na obscuridade e não sabiam de onde vinham as pedras. Mas não penetraram mutio pela zona porque eles temiam que as armas lhes pudessem ser arrebatadas pela população.
Alí no Largo da Sentina registou-se o maior enfrentamento das metralhadoras contra pedras e garrafas. Neste combate destacaram-se vários homens, entre eles fala-se de Djobla, a quem chamaram depois “comandante de artilharia".
Também outros como Djô Papinha, Tinaia, Djô d’Ema, Mané Ratin, Isidoro Graça, Daniel Graça, Careca, Futche, Toi d 'Suna e a população anônima da Ribeira Bote.
Ao nascer do dia 24, fez-se uma batida pela zona para detectar as baixas, mas felizmente não houve nenhum morto nem feridos. Só nas paredes, portas e telhados ficaram as marcas do embate das balas disparadas pelos militares portugueses.
Nesse mesmo dia, organizou-se uma manifestação silenciosa na qual participaram milhares de pessoas, que dirigiram-se ao quartel para repudiar todas as acções desenvolvidas pelos elementos reaccionários do exército português durante três dias e reiterar a decisão do povo caboverdeano de conquistar a sua independência.
Silvino da Luz, então membro da direcção do Partido destacado para orientar as acções em Cabo Verde, divulgou um comunicado onde condenava a atitude dos elementos reaccionários das Forças Armadas portuguesas e considerava que desprezando completamente a personalidade do nosso povo e num desafio de todos as normas e preconceitos indispensáveis ao estabelecimento de um clima político de bom entendimento que deveria prevalecer entre o nosso Partido e o Governo português nessa fase de descolonização, os elementos fascistas do exército colonial acabavam de dar um contributo mais à tarefa mobilizadora do nosso Partido, ao demonstrarem que, para sermos donos do nosso próprio destino, uma única solução existia - a independência total e imediata.
O mês de Setembro de 1974 inscreveria mais uma página gloriosa na nossa luta, quando os jovens caboverdeanos que se encontravam ainda servindo no exército ocupador negaram jurar a bandeira portuguesa e num gesto de rebeldia abandona¬ram as fileiras dos portugueses.
Estas formas de resistência e luta popular evoluíram no tempo e no decorrer do processo foram assu¬mindo um carácter mais organizado à medida que o Partido ia implantando as suas células em todo o território nacional. Surgiram então os denominados “Grupos de Vigilância” que rapidamente proliferaram por todo o arquipélago, criados e orientados por membros dos Comités do Partido em cada zona. Os Grupos de Vigilância são o embrião das actuais Milícias Populares - organização de tipo novo, mais disciplinada com características marcadamente para-militares e de participação, correspondendo às exigências da evolução do processo histórico.